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5 de setembro de 2017

Um mesmo contrato de compra e venda pode ser reconhecido de maneiras diferentes pelo comprador e pelo vendedor?

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por Edison Carlos Fernandes

Sim, um mesmo contrato de compra e venda pode ser reconhecido nas demonstrações contábeis do comprador de maneira diferente de como reconhecido pelo vendedor. Isso acontece porque o atual marco regulatório contábil brasileiro (direito contábil), ao adotar os International Financial Reporting Standards – IFRS, subordina a contabilidade à estratégia da empresa. Em outras palavras, as demonstrações contábeis refletem a visão sobre o negócio, sobre o setor da economia e sobre a macroeconomia do administrador da empresa. Mas essa “subjetividade” não retira da contabilidade sua força probatória, ou seja, sua aplicação jurídica? Não, de maneira alguma; porém, exige que o operador do direito saiba ler as informações prestadas nas referidas demonstrações.

Tome-se como exemplo um contrato de compra e venda de longo prazo. De acordo com a legislação contábil (Lei n° 6.404/1976, com a redação dada pela Lei n° 11.638/2007), o vendedor deve ajustar seu “contas a receber” (“clientes”) a valor presente, o mesmo ocorrendo com o comprador no seu “contas a pagar” (“fornecedor”). De maneira bastante simples, o ajuste a valor presente (AVP) se calcula utilizando a taxa de desconto que representa o dinheiro no tempo. Essa taxa não é fixada em nenhuma norma juscontábil, cabendo a cada empresa defini-la, de acordo com o impacto do tempo sobre os seus recursos financeiros. Por exemplo, se a empresa possui muito caixa, a referida taxa de desconto se aproximará da média dos rendimentos das suas aplicações financeiras; do contrário, se a empresa for muito endividada, essa taxa tenderá a ser equivalente aos juros médios previstos nos contratos de empréstimos. Estando comprador e vendedor em situações diferentes de liquidez e endividamento, o contrato de compra e venda celebrado entre eles terá valores diferentes em cada uma das respectivas demonstrações contábeis.

Além de entender e ser capaz de explicar essa diferença, o advogado da empresa (seja interno ou externo) precisa estar atento aos reflexos jurídicos desses ajustes, especialmente com relação a cláusulas de contratos firmados com terceiros. Seguindo no exemplo acima, o ajuste a valor presente no comprador (“contas a pagar”) representa, num primeiro momento, aumento do resultado (lucro); no vendedor (“contas a receber”), o efeito inicial é o contrário, ou seja, redução do resultado (lucro). Durante o prazo do contrato, esses efeitos vão se invertendo. O advogado empresarial deve avaliar qual o impacto desses efeitos nos demais contratos celebrados pela empresa, com destaque para as cláusulas de proteção do crédito (covenants).

A hipótese apresentada é somente um exemplo. A divergência nos registros contábeis e seus reflexos nas relações jurídicas da empresa estão para sofrer significativa alteração, no sentido de alargar as situações expostas a tais efeitos. Em 2018, entram em vigor as novas regulamentações sobre “receita de contratos com clientes” (IFRS 15/CPC 47) e sobre “instrumentos financeiros” (IFRS 9/CPC 48). Essas duas normas juscontábeis repercutirão tanto no “contas a pagar” (comprador) quanto no “contas a receber” (vendedor) – para ficar no exemplo utilizado. Um ano depois, em 2019, será a vez da entrada em vigor da regulamentação sobre “arrendamento” (IFRS 16/CPC 06-R2), que, na verdade, disciplina os contratos de aluguel e de leasing, alguns contratos de cessão de direito e alguns contratos de prestação de serviços, também com relevante impacto no custo jurídico – e financeiro – dos contratos firmados pela empresa, inclusive com terceiros.

Há quem diga que o futuro da advocacia empresarial é a interdisciplinaridade. No que diz respeito à relação direito e contabilidade, podemos dizer que já é o presente. Vocês estão preparados?